Tecnologia

Como está a regulação de inteligência artificial na América Latina?

Artigo da diretora-executiva da Agência Pública, Natalia Viana, fala sobre as iniciativas para para regular o uso e o desenvolvimento de inteligência artificial, segundo um relatório da organização Access Now

Os cães ladram, a caravana passa. Hoje vou mentalizar esse mantra pra ignorar, aqui neste espaço de comentário, a jogada suja de Elon Musk ao anunciar o “fechamento” de seu escritório no Brasil porque o STF enviou um comunicado dizendo que haverá sanções se ele não cumprir ordens judiciais. Arrumou uma desculpa pra demitir os poucos gatos pingados que restavam da operação por aqui e ainda conseguiu vociferar contra a “censura” do STF, animando as redes bolsonaristas e a narrativa de que qualquer tentativa de impor limites legais para as plataformas bilionárias é censura.

Entretanto, a caravana passa, a história avança, e é disso que vou tratar hoje. Mais especificamente, na América Latina avançam iniciativas para regular o uso e o desenvolvimento de inteligência artificial, segundo um relatório da organização Access Now.  Além do Brasil, projetos de lei nesse sentido foram apresentados na Argentina, Colômbia, Costa Rica, Chile, México e Uruguai.  A maioria delas segue as linhas gerais da Lei de IA da União Europeia, que estabelece que a segurança no desenvolvimento e uso dessa tecnologia deve se sobrepor às oportunidades econômicas. Outras, como a da Argentina sob o governo de Milei, vão no sentido oposto – chegaremos lá.

Um exemplo de legislação que segue a linha mestra definida pela legislação europeia é a que foi proposta pelo governo de Gabriel Boric, do Chile, em 7 de maio deste ano. A abordagem se baseia nos riscos aos direitos fundamentais causados por diferentes ferramentas. Seriam riscos inaceitáveis aqueles que são incompatíveis com o respeito e garantia dos direitos fundamentais – e, portanto, sua comercialização é proibida. Exemplos: criação de deepfakes com conteúdo sexual e identificação biométrica em tempo real, exceto para fins de segurança pública. De alto risco seriam as ferramentas que podem afetar negativamente, além dos direitos fundamentais, a saúde, a segurança ou o meio ambiente, e portanto essas ferramentas devem ser aprovadas para uso. Por exemplo, o uso da IA em processos seletivos para vagas de emprego. A categoria de “risco limitado” teria uma fiscalização mais branda. Inclui chatbots. As demais, sem risco evidente, podem ser desenvolvidas e comercializadas livremente.

Para fiscalizar e cumprir a legislação, o governo de Boric propõe criar uma Agência de Proteção de Dados Pessoais, responsável por monitorar ativa e passivamente a indústria – qualquer pessoa poderia informar à agência se identificar um incidente grave, que por sua vez exigirá do operador  uma “resposta frente às respectivas contingências”. As infrações podem ser gravíssimas, graves e leves e levar a multas de até US$ 1,5 milhão.

Na Argentina, por sua vez, o governo de Javier Milei decidiu jogar fora um projeto de lei que estava em discussão e apresentar outro, cujo foco é tornar o país “um dos quatro pólos de inteligência artificial do mundo”, segundo afirmou Milei. Poucos meses antes, o ultradireitista havia feito uma viagem de Estado para o Vale do Silício, onde teve reuniões com executivos da Apple, Google, Meta e Open AI.

Milei e seu assessor especial Demián Reide, um entusiasta da tecnologia e do Estado mínimo, acreditam que a Argentina tem vantagens perante o que chamam de “outros três” polos – EUA, China e Europa –  já que, para eles, no primeiro a situação regulatória segue nebulosa, enquanto na China e na Europa o Estado regula em excesso o uso de IA.

“A Europa é paladina da sobrerregulação”, disse Milei. “Mataram a inovação”. Como se um fosse oposto ao outro, falácia que é a cara de tipos como Elon Musk.  

Vai neste sentido a lei proposta, cujo texto vago estabelece, em vez de deveres para os diferentes atores da cadeia de IA, apenas requerimentos genéricos de transparência e explicabilidade, segurança, garantias dos direitos humanos e respeito ao Estado democrático de direitos, entre outros. Em vez de criar uma autoridade reguladora, cria um Conselho Consultivo de IA sem nenhum poder de fato: sua missão seria “elaborar planos de prevenção de possíveis perigos em inovações tecnológicas, emitir recomendações não vinculantes e estimular as boas práticas algorítmicas em inovações”. Todas as determinações sobre riscos, protocolos de transparência, rastreabilidade e mecanismos de segurança caberão a essa autoridade oca.

Finalmente, grande parte do texto é dedicada à criação de uma política de incentivo ao desenvolvimento de IA na Argentina.

É um passo além do que já estabelecia outra lei, o Regime de Incentivos para Grandes Investimentos, aprovado em 13 de junho, que incluiu o setor de alta tecnologia entre aqueles que receberão incentivos fiscais e de câmbio para investimentos acima de US$ 200 milhões.

Milei garante que a Argentina é o lugar perfeito para ser o paraíso da IA. Milei destaca aquilo que já sabemos: como o resto da América do Sul, o país teria as condições ideais para – como adivinhou o leitor – grandes Datacenters. Milei quer atrair as Big Tech para construírem seus centros de dados no sul do país. “A ideia é criar o quarto polo de IA na Argentina… basicamente é que sejam instaladas as plantas nas quais os algoritmos aprendem… para isso, é fundamental grandes extensões de terra, baixas temperaturas, acesso a muita energia e capital humano…”, explicou pelo Twitter.

A iniciativa foi aplaudida pelo jornal conservador Clarín, que manchetou que regulação excessiva “pode ir contra a Argentina ser um polo global”, e afirmou que a lei europeia é um “anti-exemplo”.

Em apoio ao projeto de lei, a Argencon, um grupo da indústria que inclui empresas de internet, entre elas a Amazon, Accenture, Mercado Livre, Microsoft e IBM, apoiou a ideia de uma regulação mínima, sugerindo que as leis devem “incentivar a inovação e a criação de novas soluções de IA” e  evitar “restrições que possam desacelerar seu desenvolvimento”, além de “formatos regulatórios rígidos, com carga burocrática excessiva e disfuncionais no que diz respeito à dinâmica de inovação destas tecnologias.”

“A diversidade de usos impossibilita a determinação de regulamentações gerais”, garante a agremiação.

O leitor que segue semanalmente essa newsletter vai encontrar ecos da carta da CNI editada especificamente para suspender a votação do projeto de Lei de IA aqui no Brasil.

Também, como no caso brasileiro, basta ler nas entrelinhas quem vai ganhar com esse tipo de proposta – as empresas multinacionais e multibilionárias, e não nós, pobres latinoamericanos.

Texto: Natalia VianaDiretora Executiva da Agência Pública

Fonte: Agência Pública

Evi Goffin

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